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sexta-feira, 11 de julho de 2008

Trecho de "Venenos de Deus, Remédios do Diabo, de Mia Couto

Capítulo um
O médico Sidónio Rosa encolhe-se para vencer a porta, com respeitos de quem estivesse penetrando num ventre. Está visitando a família de Bartolomeu Sozinho, o mecânico reformado de Vila Cacimba. À porta, a esposa, Dona Munda, não desperdiça palavra, nem despende sorriso. É o visitante quem arredonda o momento, inquirindo:
— Então, o nosso Bartolomeu está bom?
— Está bom para seguir deitado, de vela e missal…
A voz rouca parece distante, contrariada como se lhe custasse o assunto. O médico acredita não ter entendido. Ele é português, recém-chegado a África. Refaz a questão:
— Perguntava eu, Dona Munda, sobre o seu marido…
— Está muito mal. O sal já está todo espalhado no sangue.
— Não é sal, são diabetes.
— Ele recusa. Diz que se ele é diabético, eu sou diabólica.
— Continuam brigando?
— Felizmente, sim. Já não temos outra coisa para fazer. Sabe o que penso, Doutor? A zanga é a nossa jura de amor.
A dona da casa pára no meio do corredor, ajeita um cacho de cabelos sob o lenço como se aquele tufo capilar fosse o último vestígio da sua sensualidade.
— Diga-me, Doutor, não será que Bartolomeu foi atacado por essa doença que agora corre pela Vila?
— Não, esta é outra doença.
— Ainda há pouco passou pela rua um desses homens enlouquecidos, agitando os braços, parecia querer voar.
— O posto de saúde está cheio deles, quase todos soldados.
— Sabe como o povo os chama? São chamados de tresandarilhos.
— Sim, já sabia. É um belo nome: tresandarilhos…
— Acha que é uma maldição?
— Isso não existe, Dona Munda. As doenças possuem causas objectivas.
Munda bate à porta do quarto, a fortaleza onde o velho se encerrou e escurece desde há meses. A esposa aguarda pela rabugenta resposta de Bartolo meu. Em vão. Dona Munda não poupa os nós dos dedos e, de novo, golpeia a porta. Cauteloso, o Doutor Sidónio pede-lhe contenção.
— Se calhar ele está a dormir. Venho mais tarde…
— Esse fulano vai acordar.
Às vezes chama-lhe fulano, outras, reduz o nome do marido para Barto. Agora, rosto espalmado na madeira, a mão de Munda sacode o trinco. Por fim, o homem se faz escutar:
— Porquê?
Desde que ali chegou, Sidónio Rosa vem estranhando muita coisa. Por exemplo, agora: a pergunta devia ser "quem é?". Mas Dona Munda já vai anunciando: ela vinha com o Doutor. O homem resmunga: o médico que entrasse sozinho, que a esposa só lhe atrapalhava a pulsação, raios a partissem, com todo o respeito.
Dão tempo. Dona Munda vai traduzindo para o médico português os pastosos sons que vão escoando através da porta. Escuta-se o velho Bartolomeu a erguer-se do cadeirão, lento como lava fria, escutam-se os seus gemidos enquanto se dobra para calçar peúgas. Agora, diz Munda, agora ainda será preciso esperar que ele repuxe as meias até cobrir os joelhos.
— O seu marido tem tanto cuidado com as peúgas…
— Não é cuidado. É vergonha.
— Vergonha?
— Diz que tem os pés cheios de escamas. As unhas já lhe crescem fora dos dedos…
— Ora, Dona Munda…
— É ele que diz, não sou eu. O velho diz que o avô dele morreu lagarto, é isso que ele diz…
Era o que dizia o seu Bartolomeu: que era maleita de família, também ele estava a caminho de se lagartear. A única coisa, porém, que vai rastejando, rente às poeiras, é a sua pobre alma. A esposa resmunga e, depois, suspira:
— Esse teimoso nunca devia era ter saído do hospital, estava tão bem, lá na cidade.
Não saiu, fugiu. Tinham-lhe ligado a veia a um soro, dada a sua debilidade. Os alimentos desciam-lhe contra a corrente sanguínea. Para Bartolomeu era o inverso: ele é que estava alimentando o hospital, com os fluidos que lhe extraíam. Esse sangue roubado circulava agora pelo edíficio, escorria pelos fundos e se espelhava no vermelhão dos poentes. "O hospital é um lugar doente", reclamava o velho. Ao escapar-se daquele antro ele regressava para os seus antigos recantos. "Eu e a casa sofremos de uma mesma doença: saudades", disse.
— Foi a melhor coisa que me aconteceu a mim — lamenta a esposa. — A melhor coisa foi esse tempo que o teimoso passou no hospital…
Dona Munda não termina o suspiro: a porta, por fim, se abre no exacto momento em que o português lhe pergunta:
— E fizeram-lhe exames?
A resposta é interrompida pela aparição de Bartolo meu. O ex-mecânico é uma sombra esvoaçando no escuro. As mãos dele confirmam a fivela do cinto com receio de que as calças arreiem.
— Ah, Doutor, é mesmo o senhor… É que essa aí, às vezes, me engana, ela se disfarça só para eu lhe abrir a porta.
O gesto firme é uma ordem para que a esposa fique fora. Com passo hesitante, Sidónio vai entrando como se os cheiros bafientos ocupassem todo o obscuro quarto. Bartolomeu vai à frente arrastando os pés. Atrás segue a esposa, debicando distâncias. Os passos dele são pequenos: de um chão de prisão. Os passos dela são redondos: de quem anda em ilha.
— Então, meu amigo, está melhor?
— Eu só melhoro quando deixo de ser eu.
— Gosto de o ver assim, sempre filósofo.
— Desculpe, Doutor Sidonho —afirma o velho. — Eu gosto de o ver, mas não gosto que me visite.

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