RÁDIO MOÇAMBIQUE

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sábado, 23 de janeiro de 2010

Fio da Memória: a Rádio Moçambique vai lembrar Leite de Vasconcelos, um dos fundadodores deste programa há 20 anos

(LVasconcelos e António Fonseca (fundadores) e João de Sousa (realizador)

Leite de Vasconcelos deixou-nos há 33 anos. Foi a 29 de Janeiro de 1997. Um telefonema vindo dum hospital de Joanesburgo transportava a triste notícia do seu desaparecimento fisico, daquele que foi o primeiro responsável pela realização do programa “Fio da Memória” de parceria com Carlos Silva, na altura em que António Alves da Fonseca era Director Comercial desta Rádio.

Um programa da RM que completou os seus 20 anos de existência em Outubro de 2009.

O “Fio da Memória”, na sua edição do dia 24, domingo, não podia deixar de lembrar esse facto naquilo que é, no dizer de um dos seus realizadores, a “nossa singela homenagem ao homem e ao profissional. Homem de rádio e televisão. Jornalista e poeta”.

Serão transmitidos extractos da última entrevista que ele concedeu, e onde Leite de Vasconcelos, entre outras coisas, refere-se às suas vivências musicais. Às canções que tocou na Rádio, mas especialmente às canções que o regime da época não deixou que ele tocasse. Nessa entrevista, a ser reposto este domingo (24), ele recorda-nos que a sua paixão pela rádio, começou muito fora dos Estúdios.

O “Fio da Memória” é produzido por João de Sousa e Carlos Silva. É transmitido aos domingos na Antena Nacional a partir das 09.05 horas e pode ser escutado na Internet em "http://www.rm.co.mz".

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Tete: O Kudeca saiu de cena. Actores 5 estrelas sobem ao palco

O emblemático “Cine Esplanada Kudeca”, sala de cinema ao ar livre da cidade de Tete, erguida em meados da década 70, está a ser destruido para, no seu lugar, ser erguido um hotel 5 estrelas, propriedade do Grupo Hotel Vip.

O “Kudeca”, cujas obras de construção iniciaram depois do 25 de Abril de 1974, resultado de uma réplica de um estabelecimento idêntico localizado em Luanda, a capital angolana, foi concluído e inaugurado no dia 25 de Junho de 1975, dia da independência de Moçambique.

Isaías Marrão, um dos sócios-administradores de “Kudeca”, disse que o objectivo para o qual foi erguido foi ofuscado, tal como aconteceu com outras salas de cinema pelo país fora, pela “invasão” e massificação da televisão em Moçambique. As tentativas para contornar o problema, através da exibição de eventos culturais, não conseguiram inverter a fuga de espectadores.

A história do “Kudeca”

“A ideia da construção de Kudeca, não foi minha, mas sim da Moçambique Filmes, pertença de um empresário ligado ao Vaticano e que tinha casas de cinemas em Angola e em Moçambique. Nos meados da década 70 lembrou-se então de fazer em Tete o “Kudeca”, igual a um outro construído na capital angolana. Convidou várias personalidades de Tete incluindo a mim, para idealizar o projecto e foi assim que o construímos, no tempo recorde de cerca de um ano. No dia 25 de Junho de 1975 inauguramos o recinto”, disse Isaías Marrão.

Em 1978, o “Cine Esplanada Kudeca” foi, tal como outras salas de cinema, nacionalizado pelo Governo, o que fez com que a sociedade “Kudeca” quase sumisse, vendendo as suas acções a Marrão.

“Foi assim que o Instituto Nacional de Cinema na altura representando o Governo, enviou dois indivíduos a Tete que chegaram a minha casa e me pediram as chaves do cinema e os entreguei. Foi desta maneira que tomaram conta do cinema. Mas porque a direcção toda do Kudeca ainda se encontrava coesa e constituída por moçambicanos, indagamos pelo procedimento, trocando correspondências com o governo provincial e central numa autentica guerra que levou cerca de 14 anos”, explicou Isaías Marrão, um dos sócios administradores do então “Cine Esplanada Kudeca”.

O que agora deixará de ser “Kudeca” está situado num terreno paisagisticamente privilegiado, donde se pode observar o nascer do sol, reflectido sobre as aguas do rio Zambeze e a Ponte Samora Machel.

As cercas de 720 cadeiras de madeira valiosa foram oferecidas ao Conselho Municipal da Cidade de Tete.

Piloto mais antigo de Moçambique e Portugal morre aos 92 anos

O comandante Luís dos Santos da Costa Branco, o piloto mais antigo da aviação moçambicana e portuguesa, morreu ontem, quinta-feira, aos 92 anos, no Hospital da Universidade de Coimbra, informou um ex-comandante das Linhas Aéreas de Moçambique.

O comandante Costa Branco fez toda a sua carreira profissional em Moçambique, sendo uma referência na aviação moçambicana, onde contou mais de 33 mil horas de voo.

Nascido em Portugal em 1917, Costa Branco foi agraciado em 1945 pelo governador-geral da então colónia de Moçambique, tendo também sido distinguido por dois Presidentes da República de Portugal.

Costa Branco realizou o seu último voo em Moçambique, a 22 de Maio de 1976, ao comando de um Boing-737 e percorrendo as ligações Lourenço Marques-Joanesburgo-Lourenço Marques.

No blog “Voandoemmozambique”, José Vilhena escreveu que o malogrado “Foi um dos decanos da DETA (hoje LAM) e durante vários anos seu Instrutor, Verificador e Piloto Chefe. A Aviação em Moçambique muito ficou a dever ao Comandante Luís Santos da Costa Branco, pelo grande labor, empenhamento, esforço e entusiasmo. Para as novas gerações de pilotos foi sempre um marco e uma referência”.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Jaimito: Um louco ou o homem que devia ter nascido amanhã?


Numa dos muros da vedação do jardim botânico Tunduru, mesmo defronte do edifício-sede da Rádio Moçambique, em Maputo, estão expostos em papel normal ou cartolina, algumas reflexões, em texto, de um homem que chama a atenção de todo o transeunte da zona, mais precisamente da Rua da Rádio. Estes escritos são de autoria de Jaime Machatine, mais conhecido por Jaimito, seu nome artístico.

Não estão registados em algum caderno ou simples bloco de notas e muito menos em livro, mas estão disponíveis para quem os quiser consultar, interessado em conhecer e compreender o que aquele homem, que um dia foi considerado um dos melhores guitarristas moçambicanos no seu tempo, pensa de si e da sua vida e dos que o rodeiam.

“Os escritos do Jaimito”, assim me atrevo a chamá-los, podem ser entendidos como sendo fragmentos do pensamento do seu autor sobre os mais díspares assuntos, que vão da música ao cinema, passando pela literatura e religião, que é o que ele mais gosta de dissertar nas suas notas e em conversa com aqueles que o conhecem.

Um outro assunto sobre o qual ele escreve tem a ver com a sua longa e misteriosa permanência fora de Moçambique e sobre a qual os pormenores são escassos e dispersos e deles o Jaimito jamais se refere.

São também escassas referências a pessoas ou instituições com quem se relacionou no período em que permaneceu fora do seu pais, embora, numa conversa corriqueira das muitas que tenho mantido com ele quando juntos tomamos uma “Bica” de café, se tenha referido “a minha mulher” a propósito de uma das obras musicais de Joni Mitchel, cantora canadiana, versátil, que disse apreciar particularmente. Disse-me que tanto ele como aquela a sua companheira – de nacionalidade americana – partilhavam a mesma opinião sobre Mitchel, recordando até “compramos um LP” com uma foto da cantora sentada numa pedra nas margens de um lago ou riacho envolto numa paisagem tipicamente da América do Norte.

Num dia particularmente diferente dos demais Jaimito “soltou” um pouco a língua, talvez porque acabara de lhe oferecer uma cassete contendo a gravação do álbum “Thick As A Break” dos Jethro Tull, que me pedira havia muito tempo. Interessante como ficou agitadissímo quando comprovou no seu mal-tratado gravador o teor da gravação, que disse ter reconhecido logo de imediato ao ouvir os acordes da guitarra acústica iniciais da obra. Educadamente confidenciou-me que da banda liderada por Ian Anderson tinha particularmente preferência pela obra “ Benefit”, lançada dois anos (1970) antes dos Jethro Tull terem gravado o épico poema do pequeno Gerald (Little Milton) Bostock.

Apenas para se aferir dos conhecimentos que Jaimito tem da música, é interessante a sua surpresa quando lhe informei que uma das últimas obras discográficas de Joni Mitchel que me chegaram as mãos tinha a ver com uma parceria entre a cantora e Charles Mingus, que este nunca viria a conhecer porque morrera uns dias antes da sua edição. Jaimito ficou extremamente interessado nos pormenores daquela que lhe parecera uma “estranha” mas ao mesmo tempo agradável colaboração entre uma assumida cantora folk e um jazzman esquizofrénico como o era Mingus. Fez-me prometer-lhe uma cassete com o registo da obra, tal era o seu interesse em ouvir que sonoridades Joni Mitchel e Charles Mingus poderiam produzir e oferecer que pudessem agradar aos seus fãs divididos quanto aos géneros.

Pois então, contou que viveu 16 anos nos Estados Unidos, após dois ou três anos de permanência em Portugal. Em Lisboa e no Algarve, o guitarrista terá tocado em clubes nocturnos, com moçambicanos, angolanos e cabo-verdianos, nomeando Bana como tendo sido um deles. Não se recorda de alguma vez ter trabalhado com o Fu, um reputado baterista moçambicano radicado há vários anos em Portugal, muito conhecido nos meios musicais no Algarve.

Disse que com um certo Mitó Dickson (com quem se conhecera ainda em Moçambique) fez algumas gravações de músicas de autores moçambicanos, entre os quais de Wazimbo. Desconhece o paradeiro desses registos mas diz ter uma vaga ideia de que terão sido editados em disco pelo Mitó Dickson.

Em Portugal terá conhecido a “minha mulher”, americana, que entretanto engravidara. A filha de ambos, gerada naquele pais europeu, viria a nascer em 1982 nos Estados Unidos, por vontade expressa da mãe. Zara Jaime Machatine assim se chama a filha de Jaimito, tendo hoje 28 anos de idade. O que fazia e de que vivia Jaimito nos Estados Unidos tal continua envolto num mistério, sendo certo porém que foi naquele país onde todos os seus problemas actuais tiveram origem. Sabe-se apenas que dez dos dezasseis anos nos EUA foram vividos em cadeias e estabelecimentos psiquiátricos a mando dos tribunais, onde, como ele próprio me confidenciou, passou por experiências terríveis e conheceu gente da “pior espécie”.

É de supor que Jaimito, guitarrista dotado acima do normal para os padrões de Moçambique e Portugal, não tenha singrado em terras americanas onde o mercado musical é certamente mais exigente e bastante concorrido. Sem trabalho e sem meios para uma vida desafogada e independente, terá então ficado na dependência da mulher, situação que, acredito, se lhe tornou insuportável e geradora de conflitos com a parceira, a quem, diz-se, terá violentado por diversas ocasiões. O seu caso – e continuo nas meras suposições – terá sido comunicado as autoridades judiciais que não se fizeram de rogado perante um “estranja”.

A mais recente informação dá conta que, depois de várias anos de encarceramento em penitenciárias, a sua nacionalidade e a língua portuguesa, terão criado um natural interesse e simpatia de um psiquiatra americano de origem cubana. Tornaram-se amigos de longas e proveitosas conversas, o suficiente para o especialista caribenho lhe propor duas alternativas para solucionar o embróglio em que Jaimito se encontrava amarrado: ir viver para Cuba ou ... regressar ao seu país.

O nosso guitarrista não hesitou: acompanhado por dois “gorilas” do FBI, voou dos EUA, com escala em Johanesburgo, até Maputo, onde foi entregue às autoridades moçambicanas.

De um dia para outro, ei-lo que encontra na Rádio Moçambique a sua casa e galeria de exposição dos seus textos “filosóficos”. Os escritos estão sobre papel A4 normal mas, na falta deste, o autor fa-los em pedaços de cartões de embalagem de produtos alimentares ou bebidas, material fornecido por amigos e conhecidos, ou que ele próprio recolhe na rua ou nos cestos de lixo.

O lugar onde ele escreve as suas notas não podia ser mais inspirador para o Jaimito: num local público bastante concorrido por homens e mulheres das mais diversas profissões, a maior parte deles ligados a música e destes, alguns antigos membros de bandas que ele integrou antes de “dar o fora” de Moçambique.

É no Centro Social da Rádio Moçambique onde preenche os seus dias, toma as refeições que lhe são oferecidas e dorme ou passa a noite numa das entradas daquela rádio pública. Todos os que por ali passam já se habituaram a vê-lo acocorado ou sentado a escrever as suas notas, compenetrado no que faz, aparentemente alheado do rebuliço da estrada.

O local tem todas as condições para que o Jamito se inspire para o que vai escrevendo, pois para além de se encontrar e conversar com os que foram seus amigos de outrora, testemunha como ninguém os mais diversos comportamentos dos frequentadores do estabelecimento.

De madrugada, contam os homens que velam pela segurança do centro, Jaimito entrega-se normalmente a tarefa de “publicar” os seus pensamentos, pregando-os numa frondosa árvore plantada no jardim dos serviços administrativos da Rádio Moçambique, qual um jornal de parede. Por estes dias, a “exposição” pode ser vista num dos muros do jardim botânico Tunduru, defronte da RM.

Após pregar o material, o nosso “escritor de rua”, faz o que todos fazemos – ou devíamos fazer: dirige-se as casas de banho do centro, onde cuida da sua hegiene pessoal. Senta-se depois num pequeno muro situado na rampa que dá acesso ao bar do centro, folheando velhos e rasgados livros, ou então escutando música de um pequeno gravador de cassete com auscultadores minúsculos ofertados certamente por uma alma compreensiva.

Registei em imagem fotográfica alguns dos seus escritos com a sua devida autorização. Antes faço notar que quando lhe pedi para lhe fazer um retrato ou uma fotografia em conjunto recebi dele um redondo “não”, justificando a recusa com o intrigante argumento de “eu não quero mais problemas com ninguém”. Anui e dei-me por satisfeito, não sem deixar de me perguntar a que problemas se referia e com quem.

Morre o fotógrafo que imortalizou as estrelas de Hollywood

É dele a famosa foto de James Dean caminhando pela Times Square em Nova York em 1955

O fotógrafo Dennis Stock morreu em 11 de janeiro aos 81 anos na sua casa em Sarasota, na Flórida, segundo informou o Washington Post. A notícia foi divulgada pela Magnum, mítica agência em que ele desenvolveu grande parte da sua carreira profissional, conforme o jornal espanhol El País.

Stock, nascido no Bronx, em Nova York, é autor de fotos que imortalizaram estrelas de Hollywood como James Dean, o universo musical do jazz e a contracultura dos anos 60, lembra o El País. São suas as fotos de Louis Armstrong com roupa de baixo no seu camarim, a de Marlon Brando relaxado e vestido de Napoleão nos bastidores das filmagens. A de Audrey Hepburn ensimesmada enos seus pensamentos enquanto olha para fora de um carro, a de James Dean a caminhar pela Times Square em Nova Iorque em 1955.

Após um trabalho inicial na Life Magazine, começou a trabalhar na Magnum em 1951, onde ficou por 50 anos. Publicou 27 livros e fez exposições nas mais prestigiadas galerias do mundo, como o Centro Internacional de Fotografia de NY, a National Gallery de Washington e o Museu de Arte Moderna de Paris.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Sismo no Haiti: podem ser mais de meio milhão de mortos

Já há uma certeza: o primeiro-ministro do Haiti anunciou que o sismo de ontem (12) à noite provocou mais de uma centenas de milhares de vítimas. "Há mais de 100 mil mortos", disse Jean Max Bellet. Trata-se do primeiro número oficial que o governo haitiano avança desde o sismo de ontem. No entanto, o primeiro-ministro afirma que o número de vítimas poderá ultrapassar as 500 mil pessoas.

Cerca de três milhões de pessoas - um terço da população do Haiti - terão sido atingidas pelo sismo, revelou a Cruz Vermelha Internacional. O departamento de estado norte-americano disse que espera um "número avultado de vítimas". As Nações Unidas estão já a preparar uma operação de socorro internacional em larga escala para o Haiti, que foi abalado por um sismo de magnitude 7.0 na escala de Richter. 
Até ao momento, não há número de vítimas oficial, mas devido à fragilidade das habitações na região, o governo acredita que os danos serão imensos.

O maior sismo da história do Haiti

De acordo com o USGS, o maior sismo reportado até ao momento na região foi em Junho de 1984, um abalo de 6.7 na escala de Richter.
O epicentro localizou-se a 140 quilómetros de Les Caye, no Haiti e a 145 quilómetros de Barahona, na República Dominicana.


terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Estrada da Namaacha: a "curva do açucar” do nosso chá da morte

Por Edmundo Galiza Matos

As muitas estradas que sulcam o país possuem a sua “curva da morte”, umas mais perigosas que outras, mas todas elas suficientemente traiçoeiras para meter respeito ao mais competente dos automobilistas.

Que me lembre, a primeira vez que transitei numa estrada com uma dessas curvas, foi no troço que vai de Diaca a Mueda, muito famosa mais por ter sido palco de emboscadas sangrentas dos guerrilheiros da Frelimo contra as colunas militares portuguesas, do que por capotamentos de veículos conduzidos por incautos.

Não é preciso ser muito atento para se perceber que grande parte dos acidentes de viação mais mortíferos em Moçambique, têm ocorrido nas curvas acentuadas, apesar de os sinais da sua proximidade serem facilmente notados.

A Estrada Nacional Número 2 (EN2), que vai da capital do país a vila fronteiriça da Namaacha, tem também a sua “curva da morte”, curiosamente plantada a escassos cento e cinquenta metros de um posto de controlo policial. Foi responsável pela morte de muitos automobilistas e pessoas que praticavam o contrabando de produtos ilegalemente importados da Swazilândia, fugitivas das autoridades. No local, para além de sulcos feitos no pavimento pelos veículos acidentados, brilham os cacos de vidro das garrafas de bebidas alcoólicas, restos de favos de ovos e plásticos das bacias e baldes de diversas cores, produtos que se espalhavam por ali cada vez que o carro do “mukherista” capotava. Morria gente e perdiam-se os produtos.

De há uns anos para cá, a “curva da morte” na EN2 não tem sido palco de mortes de importadores ilegais pela simples razão de que o contrabando foi em grande medida travado.

Hoje assiste-se, de tempos a tempos, ao capotamento de veículos de grande porte, transportando quase sempre açucar que o reino vizinho exporta através do porto de Maputo. Nos trés últimos casos de que tenho conhecimento, perderam-se consideráveis toneladas de açucar e ficaram feridas trés pessoas, curiosamente mulheres, que na fronteira haviam apanhado boleia.

No passado sábado, 9, um desses veículos pesados, capotou, espalhando a toda a largura uma quantidade considerável de açucar branco. A mulher que ia no veículo ficou gravemente ferida, correndo o risco de ver amputado um dos seus braços.

Os residentes nas imediações da “Curva do açucar”, pois é assim como agora se chama, são o que mais beneficiam cada vez que um daqueles camiões vira de pneus para o ar. Munidos de sacos de ráfia, baldes e bacias, panelas, capulanas e outros utensílios, toda a gente espera que as autoridades terminem a peritagem do sinistro para, quais abutres, se atirarem ao produto com uma voracidade tal que, em alguns minutos, o local deixa de ser branco para retomar a cor do alcatrão.

Livro: “Cadernos das Memórias Coloniais”, ou testemunhos do racismo em Moçambique (*)

por FERNANDA CÂNCIO (Diário de Notícias/Portugal)

Nascida em Moçambique, deixou a sua terra aos 12 anos, em 1975, para a segurança e o desprezo da metrópole. O seu recém-publicado “Caderno das Memórias Coloniais” é a história de uma retornada que assume o racismo português.

Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa ou caminhar, apenas. Para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas-culpados. Entre as vítimas há carrascos.

Passa muito tempo até termos a voz, até termos saldado, a bem ou a mal, a dívida que pensámos dever; até cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade, essas cordas tão sujas, tão forçadas. Até não nos importarmos de ser apenas umas cabras, párias do sangue e da raça. Até perder a fé e a cortesia. Tudo.

Isabela tem 46 anos, um blogue criado em 2005 (Mundo Perfeito) e um livro, publicado agora na Angelus Novus, a editora do crítico literário e poeta Osvaldo Silvestre, que dá pelo nome de Caderno de Memórias Coloniais e compila textos do blogue e textos sem ser do blogue, textos mais curtos ou mais compridos mas todos densos, sanguíneos, doces e brutais, como algo que vem das entranhas. "Comecei a escrever e a gostar do que estava a escrever. Achei que estava a sair bem, Com ternura mas também com violência. Claro que tenho medo de ser mal interpretada. Mas sinto muito alívio. Libertei-me de um fardo que carreguei comigo a vida toda."

O livro desfaz o postal da África colonial mitificada, doce, dos fins de tarde rosa, dos vestidos brancos, dos criados negros calados, "naturalmente submissos" e agradecidos, a quem "se tratava muito bem". Não:"É terrível falar disto mas a verdade é que nós vivíamos num país onde se podia atropelar um negro e não ir para a prisão. Não tinham direitos. E por muito terrível que tenha sido o que aconteceu no fim aos portugueses,e foi, era inevitável que saísse aquela raiva por algum lado."

Sim, Isabela é capaz de ver e dizer isto, esta coisa arrepiante: houve uma espécie de justiça nos massacres dos brancos. Mesmo se ela sabe que quando em Setembro de 1974 mataram famílias conhecidas à catanada, espalhando-lhes os restos pelas machambas, animais e pessoas, tudo o que era branco, à mistura, só por sorte inaudita ela e os pais não fizeram parte das contas. "Quando começaram os tiros escondemo-nos no corredor da casa, deitados no chão.

Sabiamos que se entrassem não escapávamos. Não sei por que não nos atacaram - ainda hoje me pergunto se foram os nossos vizinhos negros que nos protegeram". Os vizinhos negros com quem ela estava proibida de se dar, como o menino da casa ao lado com quem queria brincar, ele em cima da árvore, ela sobre a garagem, a conversar até a mãe os apanhar em flagrante. "As minhas memórias de infância estão cheias desses interditos. Nós não podiamos dar-nos com os pretos e tudo o que eu queria era dar-me com eles. Queria usar capolanas, andar descalça, aprender a língua... E tudo isso me era era proibido."

Até há 15 anos, nunca tinha falado disto com ninguém. E até ter começado a escrever no blogue, nunca tinha falado como tinha de falar de África, de Moçambique, das suas memórias de infância e do seu pai, o homem enorme que a pegava ao colo e a levava para todo o lado, para as obras onde era electricista e onde dirigia "os seus muitos pretos" e os agredia com palavras e porrada, para as tardes de camarão grelhado e penalties com os outros homens em que aprendeu a linguagem do racismo, para as aldeias onde espancava um empregado faltoso, "um preto de merda", "um preto cabrão", para os longos passeios pelo mato onde se perdia por picadas que não davam para lado nenhum, o homem que lhe disse sempre: "Tens de ser independente, dona da tua vida".

O pai contraditório, monstruoso e deslumbrante e inultrapassável que morreu em 2001, já em Portugal, depois de ter ficado em Moçambique mais dez anos com a mãe, depois de ter estado preso um ano e perder metade do peso por "dizer mal de Samora Machel" ("Se não tivesse vindo para cá acabariam por matá-lo"), o pai para quem toda a gente que não via "os pretos" como ele era "comunista", o homem que mandou em lágrimas a filha única e adorada aos 12 anos, em 1975, para "a metrópole" onde ela andou uma década de casa em casa, uma refugiada de avó em tia, sempre com a roupa numa mala debaixo da cama, sem gavetas nem armários e um cão, o Farrusco que segura ao colo na foto da capa do livro, como única companhia até ser envenenado por uma das familiares (e os olhos ainda se carregam agora, como se nessa atrocidade estivesse tudo - passar a porta de vidro do aeroporto para o avião e para o "slide cinzento" que Portugal lhe foi, nunca mais voltar, viver em "casas metidas para dentro", deitar fora a roupa colorida para não a apontarem na rua "olha a retornada exploradora dos pretos", o silêncio ante os insultos: "Dizer que não era mentir, dizer que sim era trair o meu pai").

Trair o pai. Isabela, o nome que Isabel Figueiredo Almeida Santos, agora professora, antes jornalista, adoptou no seu blogue, nunca quis fazê-lo. "Tinha de me posicionar de forma muita ambígua - tinha de gostar dos meus pais e ao mesmo tempo lidar bem com a minha consciência. Escrevi este livro porque senti que esta história ninguém a contava. E que contar a história do meu pai era contar a história dos portugueses. Porque ele não era diferente." Porquê só depois da morte dele? "Muitas pessoas pensam que isto é um pontapé no pai morto, mas não é. Ele sabe que não estou a mentir".

Saldar, a bem ou a mal, a dívida que pensava dever, não se importar de ser uma cabra, pária de sangue e de raça, escreve. A pária que retrata no pai Portugal e a história do colonialismo e que mantém a mãe protegida do que escreveu e sentiu - mesmo se, reconhece, "apesar de falar muito menos com ela que com o meu pai, às vezes ela surpreende-me nas coisas que sabe de mim". A "traidora" que caminha na fronteira entre todas as lealdades: "É imperdoável que o governo da altura, sabendo o que se tinha passado noutras descolonizações, tenha deixado ali as pessoas. A descolonização foi muito mal feita - e podia não ter sido. As pessoas foram entregues."

(*) Título da minha responsabilidade