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sábado, 14 de junho de 2008

Ingo Schulze: "O Ocidente perdeu a face humana"

Em tempos marcados pela velocidade da informação, fragmentadora de factos, Ingo Schulze procura o modo tradicional para contar histórias - num ritmo aparentemente linear, ele mostra como o celular (objecto presente em quase todos os seus contos e símbolo máximo do alto grau de comunicação) pode tanto representar um elemento de integração (''Ninguém mais precisa ficar sozinho'', diz um personagem no conto que dá título ao livro) como também traduz a pequenez em que se transformou a condição humana. É o que Schulze comenta na seguinte entrevista ao Estado, realizada por e-mail.
Seriam os seus livros uma espécie de documentação da vida privada da antiga Alemanha Oriental?
Espero que nos meus livros se possa saber algo sobre a Alemanha de hoje, mas também sobre o país de 20 ou 30 nos atrás. Mas é claro que se trata, sobretudo, de contar histórias, e isso só funciona quando se inventa algo. Quando isso dá certo - e eu digo isso enquanto leitor -, tenho o sentimento de que é por causa do discurso em si, tanto faz em qual lugar desse mundo e com as línguas. Eu preciso aprender outra língua para conhecer as possibilidades e limites do meu próprio idioma. É preciso acrescentar que não apenas o antigo Bloco do Leste passou por essa transformação, mas também a China, a Índia e muitos outros países. Nós viemos de fora do Ocidente, somos estranhos, crescemos de forma totalmente diversa. De um lado, é a visão de fora, do outro, é a de dentro. Meu problema não é o desaparecimento do Leste, mas sim o desaparecimento do Ocidente, um Ocidente com uma face humana. Me perturba a questão de como o Ocidente se modificou a partir da queda do Bloco do Leste.
Que tipo de desafios na escrita você gosta de enfrentar? E quais você tenta evitar?
Toda literatura é um estímulo para mim. E, como para um compositor ou para um pintor, acredito que a questão seja: como é possível, ainda hoje, contar uma história, compor uma canção, pintar um quadro? Acho que se trata de encontrar um estilo apropriado para cada momento, ou seja, sempre desenvolver um estilo a partir da matéria. Por essa razão, para mim é sempre importante prender os leitores, mas, por outro lado, também empurrá-los de novo para fora da história, enviar um sinal que mostre: atenção, agora estou contando isso deste e desse jeito, mas isso também pode ser contado de modo bem diferente. Um meio de alcançar isso é deixar que diversos estilos se entrelacem.
No mundo atual, quem você pensa que está ganhando: as pessoas que usam a palavra para destruir ou os agitadores da palavra?
Eu acredito que a literatura, que coloca perguntas muito fundamentais e assim representa o mundo da maneira mais diferenciada, também é a que melhor funciona. Proust ou Kafka ou Guimarães Rosa mudaram o mundo.
Muito se falou sobre a mudança mundial depois do 11 de Setembro. Foi realmente marcante?
Depois do 11 de Setembro, houve a chance tanto para os EUA quanto para todo o Ocidente de, no bom sentido, mudar o mundo de facto. Quase todos os países se mostraram solidários aos EUA. Isso poderia ter sido aproveitado para se chegar a um acordo sobre muitas coisas: sobre o desarmamento, sobre ajudas recíprocas, os conflitos entre Israel e Palestina, etc., etc. Em vez disso, essa coisa se tornou um motivo para cobrir o mundo de guerras e deturpar o Ocidente até que ele se torne irreconhecível. Quem podia imaginar há sete anos que a proibição da tortura poderia ser colocada em questão oficialmente por um governo?
O que o estimula quando escreve?
Eu escrevo como alguém que está fazendo um passeio, que acha o entorno muito bonito, mas nunca sabe se da próxima moita não surgirá um assassino. Eu nunca sei se vai dar certo, se vou encontrar um final, para quais conhecimentos ou mudanças a busca me conduzirá. E não posso imaginar um trabalho melhor para mim.
Quando você começa a escrever, quanto da história já está em sua mente e quanto surge a partir do processo de experimentação?
Nos contos é comum que os personagens surjam a partir de uma situação. Vários dos que estão próximos a mim no começo podem se distanciar, e vice-versa. Em um romance, preciso saber mais ou menos como ela ou ele enxergam o mundo, quando embarco o personagem na viagem. Comigo quase tudo surge enquanto estou escrevendo. Para começar, sem dúvida a gente precisa de uma idéia, e ela pode aparecer quando estou escovando os dentes ou quando fico na expectativa de um jogo de futebol.
Essa vai ser sua primeira visita ao Brasil? Qual a expectativa? Você conhece algum escritor brasileiro?
Eu estive por três semanas no Brasil em 2002, quando saiu o meu livro Histórias Simples da Alemanha Oriental (Editora Lacerda). Agradeço a essa estadia, entre outras coisas, por causa das leituras de Guimarães Rosa: seu livro Grande Sertão: Veredas me ajudou muito enquanto estava escrevendo meu romance Neue Leben. Entre outras coisas, adotei com leves alterações a cena da encruzilhada, ou seja, do pacto com o Diabo. Fora o Marcelo Backes, meu tradutor, ainda não conheço nenhum escritor brasileiro pessoalmente. Mas em Paraty isso logo vai mudar.(X)

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