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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A justiça dos padres de Macuti: “A certeza do dever cumprido, por solidariedade com os mais desprotegidos"


(Fernando Mendes tinha 24 anos quando chegou a Moçambique. Hoje tem 64)

Por Marta Martins Silva (Correio da Manhã)

Janeiro de 1972. Prisão da Beira, Moçambique. Em duas celas contíguas, Fernando e Joaquim comunicam por pancadas secas na parede. Acabaram de ser presos pela PIDE. Não se vêem mas sabem que o outro está do lado de lá do cimento que trava a liberdade. "Estava-se no pico do Verão na Beira, a cela era uma espécie de garagem", no primeiro dia a comida foi posta no chão, sem garfo ou colher que a levasse à boca.

Por ali haviam de estar um mês, antes de serem transferidos para o centro prisional em Machava, nos arredores de Lourenço Marques. Em Portugal, no poder, está Marcello Caetano. Oliveira Salazar havia morrido dois anos antes mas o País continuava ensombrado pela ditadura. Fernando e Joaquim são os padres Mendes e Teles Sampaio, para a História conhecidos como os padres do Macúti. Os padres que desafiaram o poder em nome da paz há quase quatro décadas. Entre grades, um pensamento: poderão dois homens sozinhos, ainda que homens de fé, fazer uma revolução?

"Pela primeira vez na história de Moçambique houve padres de raça branca presos pelo regime. Uma pedrada no charco, a imprensa internacional não parava de falar do caso" – recorda hoje, aos 64 anos, Fernando Mendes, um dos protagonistas. "Naqueles dias, o sentimento que nos animava era a certeza do dever cumprido, por solidariedade com os mais desprotegidos e inocentes" – lembra o outro, Joaquim Teles Sampaio, agora com 78.

A PAZ É POSSÍVEL?

Em Novembro de 1971 Fernando e Joaquim souberam, por dois missionários espanhóis, do massacre de Mucumbura, na província de Tete. "As tropas portuguesas incendiaram e metralharam as casas (palhotas) dos negros e mataram dezenas de crianças, mulheres e idosos. Sabendo disso, era impossível calar, apesar de na cidade ‘branca’ onde exercíamos a nossa actividade – na Paróquia do Coração de Jesus do Macúti, na Beira – parecer que nada acontecia porque a censura não permitia que se falasse na guerra que acontecia ali, a escassos quilómetros" – lembra Fernando.

Não aguentaram a injustiça e, para o dia um de Janeiro de 1972, Dia Mundial da Paz, escolheram o mote: ‘A Paz é possível, mas Moçambique está em guerra’ na homilia de domingo. "Sentia revolta, gritos abafados até ao dia em que quebrei o silêncio e denunciei os massacres, perante numerosa assembleia cristã. Tinha obrigação de os denunciar e esperava que fossem uma grande trovoada" – recorda Joaquim Teles Sampaio.

"Logo nessa semana houve um burburinho, chamaram-se alguns ouvintes para contar o que tinham ouvido na homilia, e ficámos em vigilância apertada da PIDE". Oito dias depois "havia uma cerimónia de escuteiros, uma promessa dos lobitos, mas a maior solenidade centrava-se na magna reunião de todos os movimentos católicos da paróquia".

O padre Fernando, então assistente religioso dos escuteiros, impediu que a bandeira nacional entrasse no templo, porque para muitos a bandeira era símbolo de ocupação. "Foi este episódio que veio a desenrolar todo o processo, montado para difamar e condenar os padres", lembra Sampaio. A 10 de Janeiro a manchete do jornal ‘Notícias da Beira’ acicatava a revolta: "Crime contra a harmonia racial; Padres Sampaio e Fernando; Nós denunciamos" – lia-se na notícia de cinco colunas ilustrada com cinco fotos tipo passe do padre Joaquim.

O artigo era assinado por CA, conselho de administração, embora a autoria fosse atribuída ao engenheiro Jorge Jardim (pai de Cinha Jardim), administrador. "Essa noite, como reacção à notícia houve um apedrejamento contra a nossa casa, se lá estivéssemos tínhamos sido linchados", afirma Fernando. Estavam longe, em Vila Perry, a mais de uma centena de quilómetros da Beira, num encontro religioso. Foi lá que foram presos, levados pela PIDE para a prisão.

O ano "que passei na prisão foi, por estranho que pareça, o ano mais feliz da minha vida, embora tenha sofrido muito. Mas ali o meu sofrer teve, como nunca, uma razão de ser. É lutando que se vive e é a lutar que se morre" – diz Sampaio. Um ano e três meses depois foram julgados.

"Cada dia a mais na prisão era um prejuízo para o governo. A sentença para o Sampaio foi de dois anos de prisão, mas como tinha passado um ano ficou com pena suspensa. Para mim foi sete meses, dado como cumprido", lembra Fernando. Regressaram a Portugal em Março de 1973 em aviões diferentes por medo de represálias. Depois disso, Sampaio foi pároco da Reboleira, na Amadora, leccionou na escola secundária e colaborou em várias outras paróquias.

Regressou há seis anos a Manteigas, onde iniciou a sua carreira sacerdotal. Fernando mora em Braga, na terra onde nasceu. Largou a batina da Igreja em 1974 por desilusões várias com a instituição. Licenciou-se em História, casou com uma catequista e teve dois filhos. Já é avô. O tempo passa mas a História está escrita: Fernando e Sampaio serão sempre os padres do Macúti.

JULGADOS NO TRIBUNAL MILITAR

Na prisão da Beira, onde estiveram o primeiro mês, não foram torturados "por serem brancos e padres" mas as condições eram nulas. "Era uma autêntica frigideira onde as minhas costas se esfolaram", recorda Sampaio, que arranjou "o cotinho de um lápis com que escrevia recados em papel higiénico para Fernando, enviados pelo rapaz da limpeza que se solidarizou" com a história.

Depois do inferno na prisão da Beira, atormentou-os a prisão de Lourenço Marques, onde estavam detidos dois mil presos políticos em nove pavilhões. O caso dos padres do Macúti é o único caso conhecido de dois elementos do clero secular terem sido julgados por um tribunal militar.

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