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terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Livro: “Cadernos das Memórias Coloniais”, ou testemunhos do racismo em Moçambique (*)

por FERNANDA CÂNCIO (Diário de Notícias/Portugal)

Nascida em Moçambique, deixou a sua terra aos 12 anos, em 1975, para a segurança e o desprezo da metrópole. O seu recém-publicado “Caderno das Memórias Coloniais” é a história de uma retornada que assume o racismo português.

Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa ou caminhar, apenas. Para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas-culpados. Entre as vítimas há carrascos.

Passa muito tempo até termos a voz, até termos saldado, a bem ou a mal, a dívida que pensámos dever; até cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade, essas cordas tão sujas, tão forçadas. Até não nos importarmos de ser apenas umas cabras, párias do sangue e da raça. Até perder a fé e a cortesia. Tudo.

Isabela tem 46 anos, um blogue criado em 2005 (Mundo Perfeito) e um livro, publicado agora na Angelus Novus, a editora do crítico literário e poeta Osvaldo Silvestre, que dá pelo nome de Caderno de Memórias Coloniais e compila textos do blogue e textos sem ser do blogue, textos mais curtos ou mais compridos mas todos densos, sanguíneos, doces e brutais, como algo que vem das entranhas. "Comecei a escrever e a gostar do que estava a escrever. Achei que estava a sair bem, Com ternura mas também com violência. Claro que tenho medo de ser mal interpretada. Mas sinto muito alívio. Libertei-me de um fardo que carreguei comigo a vida toda."

O livro desfaz o postal da África colonial mitificada, doce, dos fins de tarde rosa, dos vestidos brancos, dos criados negros calados, "naturalmente submissos" e agradecidos, a quem "se tratava muito bem". Não:"É terrível falar disto mas a verdade é que nós vivíamos num país onde se podia atropelar um negro e não ir para a prisão. Não tinham direitos. E por muito terrível que tenha sido o que aconteceu no fim aos portugueses,e foi, era inevitável que saísse aquela raiva por algum lado."

Sim, Isabela é capaz de ver e dizer isto, esta coisa arrepiante: houve uma espécie de justiça nos massacres dos brancos. Mesmo se ela sabe que quando em Setembro de 1974 mataram famílias conhecidas à catanada, espalhando-lhes os restos pelas machambas, animais e pessoas, tudo o que era branco, à mistura, só por sorte inaudita ela e os pais não fizeram parte das contas. "Quando começaram os tiros escondemo-nos no corredor da casa, deitados no chão.

Sabiamos que se entrassem não escapávamos. Não sei por que não nos atacaram - ainda hoje me pergunto se foram os nossos vizinhos negros que nos protegeram". Os vizinhos negros com quem ela estava proibida de se dar, como o menino da casa ao lado com quem queria brincar, ele em cima da árvore, ela sobre a garagem, a conversar até a mãe os apanhar em flagrante. "As minhas memórias de infância estão cheias desses interditos. Nós não podiamos dar-nos com os pretos e tudo o que eu queria era dar-me com eles. Queria usar capolanas, andar descalça, aprender a língua... E tudo isso me era era proibido."

Até há 15 anos, nunca tinha falado disto com ninguém. E até ter começado a escrever no blogue, nunca tinha falado como tinha de falar de África, de Moçambique, das suas memórias de infância e do seu pai, o homem enorme que a pegava ao colo e a levava para todo o lado, para as obras onde era electricista e onde dirigia "os seus muitos pretos" e os agredia com palavras e porrada, para as tardes de camarão grelhado e penalties com os outros homens em que aprendeu a linguagem do racismo, para as aldeias onde espancava um empregado faltoso, "um preto de merda", "um preto cabrão", para os longos passeios pelo mato onde se perdia por picadas que não davam para lado nenhum, o homem que lhe disse sempre: "Tens de ser independente, dona da tua vida".

O pai contraditório, monstruoso e deslumbrante e inultrapassável que morreu em 2001, já em Portugal, depois de ter ficado em Moçambique mais dez anos com a mãe, depois de ter estado preso um ano e perder metade do peso por "dizer mal de Samora Machel" ("Se não tivesse vindo para cá acabariam por matá-lo"), o pai para quem toda a gente que não via "os pretos" como ele era "comunista", o homem que mandou em lágrimas a filha única e adorada aos 12 anos, em 1975, para "a metrópole" onde ela andou uma década de casa em casa, uma refugiada de avó em tia, sempre com a roupa numa mala debaixo da cama, sem gavetas nem armários e um cão, o Farrusco que segura ao colo na foto da capa do livro, como única companhia até ser envenenado por uma das familiares (e os olhos ainda se carregam agora, como se nessa atrocidade estivesse tudo - passar a porta de vidro do aeroporto para o avião e para o "slide cinzento" que Portugal lhe foi, nunca mais voltar, viver em "casas metidas para dentro", deitar fora a roupa colorida para não a apontarem na rua "olha a retornada exploradora dos pretos", o silêncio ante os insultos: "Dizer que não era mentir, dizer que sim era trair o meu pai").

Trair o pai. Isabela, o nome que Isabel Figueiredo Almeida Santos, agora professora, antes jornalista, adoptou no seu blogue, nunca quis fazê-lo. "Tinha de me posicionar de forma muita ambígua - tinha de gostar dos meus pais e ao mesmo tempo lidar bem com a minha consciência. Escrevi este livro porque senti que esta história ninguém a contava. E que contar a história do meu pai era contar a história dos portugueses. Porque ele não era diferente." Porquê só depois da morte dele? "Muitas pessoas pensam que isto é um pontapé no pai morto, mas não é. Ele sabe que não estou a mentir".

Saldar, a bem ou a mal, a dívida que pensava dever, não se importar de ser uma cabra, pária de sangue e de raça, escreve. A pária que retrata no pai Portugal e a história do colonialismo e que mantém a mãe protegida do que escreveu e sentiu - mesmo se, reconhece, "apesar de falar muito menos com ela que com o meu pai, às vezes ela surpreende-me nas coisas que sabe de mim". A "traidora" que caminha na fronteira entre todas as lealdades: "É imperdoável que o governo da altura, sabendo o que se tinha passado noutras descolonizações, tenha deixado ali as pessoas. A descolonização foi muito mal feita - e podia não ter sido. As pessoas foram entregues."

(*) Título da minha responsabilidade

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