Você pensa em jazz e, quase automaticamente, alguém com sobrenome Marsalis lhe vem à cabeça. O trompetista Wynton é o diamante mais genial da família constituída pelo pianista Ellis Marsalis e dona Dolores Ferdinand, em Nova Orleans, o berço histórico do jazz pouco mais de um século atrás. Pianista, professor e educador célebre, Ellis, hoje com 73 anos, formou cada filho com especial carinho: o saxofonista Branford, o trompetista Wynton, o trombonista Delfeayo e o caçula Jason, baterista. Mas Ellis foi bem mais do que um pai de grandes talentos familiares. Ele também iniciou na música nomes como os trompetistas Nicholas Payton e Terence Blanchard, além do cantor e pianista Harry Connick Jr. Todos nascidos em Nova Orleans.
Nas últimas três décadas o domínio desta dinastia de músicos nascidos na mesma cidade de Louis Armstrong sobre a cena jazzística é incontestável. É verdade que as tribos mais especializadas de platéias jazzísticas costumam torcer o nariz para tamanho sucesso. Ainda mais que aparentemente os Marsalis soam passadistas. Construíram suas carreiras basicamente cultuando o passado. Ora, o aparentemente conservador de Wynton só agora deixa entrever suas metas artísticas de modo mais claro. Posso estar enganado, mas pela primeira vez sinto que o reizinho dos Marsalis está operando o milagre de levar o jazz, música historicamente oral, para os domínios da música escrita.
Torcidas de nariz são apenas demonstração de ranço. Uma olhadela rápida no primeiro semestre deste ano não deixa dúvidas. Eles dominam mesmo a cena musical. O patriarca Ellis Marsalis acaba de lançar o CD An Open Letter to Thelonious, um maduro e pessoal tributo a Monk, rodeado por um trio onde destaca-se o caçula Jason na bateria (ELM Records). Wynton ataca em várias frentes. Seus últimos lançamentos são maravilhosos: o DVD Congo Square, onde sua Jazz at Lincoln Center Orchestra une forças com o grupo Odadaa! de percussionistas e cantores de Gana; e o CD, lançado simultaneamente nos EUA e no Brasil (Blue Note/EMI) intitulado Two with the Blues, reunindo o quinteto de Wynton Marsalis e o country man Willie Nelson.
Além disso, a Sony-BMG não perde tempo, apela para Lavoisier e relança a todo momento picadinhos, sobretudo de Wynton e de Branford. Este mês chegaram ao mercado internacional as coletâneas Standards and Ballads, de Wynton, e Classic Branford, onde o irmão mais velho interpreta só música clássica, de Rachmaninov a Villa.
A música dos Marsalis em geral comenta e se alimenta do nascimento, evolução e clímax do jazz como um universo à parte. Eles jogam com os estilos como músicos eruditos pulam do barroco para o romantismo ou para o classicismo. Seria esta uma atitude pós-moderna? A grosso modo, encaram Armstrong e Ellington como pais fundadores do gênero, os beboppers Charlie Parker, Thelonious Monk e Dizzy Gillespie como clássicos modernos e entronizam o hard bop como ponto de chegada. Mais do que isso: Wynton coloca-se sempre como o contador de histórias. Mas ele é musicalmente inquieto, renova-se a todo instante. Enquanto Ellington empilhava temas, dava-lhes títulos sugestivos e os enfeixava numa suíte, Marsalis faz da narração de uma história ou da múltipla abordagem de uma temática o núcleo de suas obras formalmente mais extensas. Foi assim com Blood on the Fields, sua primeira e mais ambiciosa incursão nas formas longas, em 1997, que o levou a ser o primeiro músico de jazz a ganhar um Pulitzer. Em três horas, o espetáculo reúne solistas vocais e instrumentais para contar a história dos negros africanos de várias etnias escravizados nos EUA. Tese central: a escravidão define a identidade americana.
No ano passado, Wynton lançou um CD genial, inesperadamente atual e chocante: From the Plantation to the Penitentiary (Blue Note) traz seu quinteto atual e a cantora convidada Jennifer Sanon, de 21 anos. Uma feroz e ácida radiografia da sociedade americana atual. As canções, letra e música de Wynton, transformam o grande trompetista praticamente num rapper jazzístico em termos de letras (confira Supercapitalism). Musicalmente, a atitude é pós-moderna, no sentido de passear pelos estilos jazzísticos históricos.
Congo Square, agora lançada em DVD a partir de uma apresentação no Festival de Jazz de Montreal do ano passado, é uma obra-prima de duas horas de duração estreada em 25 de agosto de 2006 na Congo Square, a praça de Nova Orleans, exatamente um ano após a tragédia do Katrina. Recria, num magnífico encontro entre a Jazz at Lincoln Center Orchestra e o grupo Odadaa! de Gana, o que seriam as músicas, a percussão, a dança e as letras cantadas ainda em dialetos africanos, na praça central de Nova Orleans, nos século 18 e 19.
Se tivesse nascido no século 19, com certeza Wynton Marsalis seria compositor de óperas. ''Dramma in musica'', este é seu destino irremediável. Neste sentido, ele constrói uma curiosa ponte com a música dita clássica. Enquanto suas criações formalmente extensas são inteiramente escritas, ultrapassando a tão celebrada oralidade do jazz, de outro lado um compositor contemporâneo como Osvaldo Golijov escreve uma Paixão Segundo São Marcos, em 2000, adotando uma escrita claramente popular. Alguém aí lembra da Missa Criolla de Ariel Ramírez? Ela misturava músicas populares e folclóricas num esquema formal sacro. Pois Golijov vai mais longe: mistura várias tradições populares, convoca a brasileira Luciana Souza, põe pitadas de música judaica sefardita, enfatiza a percussão. A parceria com o grupo Odadaa! de Gana em Congo Square sugere que Marsalis vai na mesma direção.
Sem dúvida, uma convergência bem-vinda. Cai por terra uma dicotomia histórica entre as músicas de tradição oral e as de tradição escrita. A partitura na música clássica é o roteiro de uma obra musical ideal, que Platão diria estar no mundo das idéias e que os intérpretes perseguem sem jamais alcançar sua essência. Nas músicas orais, ela é mero lembrete para economizar tempo, como dizia Duke Ellington. Com Marsalis, o jazz chega ao que o francês Christian Béthune chama de ''segunda oralidade''. Ou seja, a partitura passa a ser tão rigorosa e complexa quanto a da música clássica européia branca; mas não é mais o roteiro de uma obra musical ideal à la Platão. Ela fixa os momentos coletivos, mas abre espaço para o improviso contra este pano de fundo organizado. Sem esquecer o swing, é lógico. Porque hoje compositores como Wynton Marsalis e Osvaldo Golijov não têm mais a vergonha que o filósofo Walter Benjamin sentiu nos anos 30, ao se pilhar marcando o ritmo com os pés ao ouvir uma big band: ''Isso não bate com minha educação''.
IRMÃOS DE SUCESSO
WYNTON MARSALIS: A grande estrela da família nasceu em 1961 e começou a estudar trompete aos 6 anos. Aos 14, já tocava com a Filarmônica de Nova Orleans e, aos 17, mudou-se para Nova York, onde freqüentou a Juilliard School. Em seguida, trabalhou com lendas do jazz: Herbie Hancock, Sarah Vaughan, Dizzy Gillespie e Sonny Rollins. Além da carreira de intérprete e compositor, ele é desde o fim dos anos 90 diretor artístico da série Jazz at Lincoln Center, à frente da qual tem promovido pesquisas sobre a história do jazz. Criou e apresentou diversos programas de televisão.
JASON MARSALIS: Nascido em 1977, o baterista desenvolveu um estilo fruto da associação da musicalidade herdada da família com os estudos formais na Universidade Loyola. Alguns de seus melhores trabalhos saíram da parceria com o pianista Marcus Roberts.
BRANFORD MARSALIS: O saxofonista é o mais velho dos irmãos Marsalis. Começou a carreira no início dos anos 80 tocando na big band de Art Blakey. Trabalhou também com Miles Davis em suas últimas aparições públicas e, durante alguns anos, acompanhando o cantor Sting. Branford participou também de shows com a banda Grateaful Dead. Criou um selo, o Marsalis Records e, atualmente, trabalha com o Branford Marsalis Quartett. Ganhou o Grammy de melhor instrumentista de jazz em 1993. Nos últimos anos tem se dedicado a arrecadar fundos para as vítimas do Katrina.
Delfeayo Marsalis: Trombonista, atuou na big band de Art Blakey e com Ray Charles. Aos 43 anos, dedica-se ainda à função de engenheiro de gravação, trabalhando com artistas como Harry Connick Jr. É autor de balé inspirado em Um Bonde Chamado Desejo.
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