Um tio rico, mas distante culturalmente. É assim que Moçambique enxerga o Brasil, na opinião do escritor Mia Couto.
Aos 56 anos, o autor de "Terras Sonâmbulas" (considerado um dos 12 melhores livros africanos do século 20), "O Voo do Flamingo" e outras 24 obras retorna ao País (Brasil) para participar em alguns eventos. Nesta quarta-feira (dia 3), dirigiu uma aula-palestra para alunos do 3º ano do ensino médio do colégio São Luiz, em São Paulo.
"Já me sinto um morto!" Com um misto de brincadeira e espanto, Mia Couto fala ao iG (site brasileiro) sobre ter os seus livros lidos em escolas brasileiras, que normalmente reservam os seus currículos para os cânones da literatura. "Fico feliz que esses livros possam chegar a pessoas mais novas. Mas, por outro lado, o que deveria ser feito são aulas de literatura, de expressão criativa, como suporte para o ensino de uma língua. Quando estudei os autores, eu os odiava. Era algo frio, pouco literário, não era um convite a ler e a escrever."
Couto diz que perdeu a conta de quantas vezes veio ao Brasil. Mas, questionado sobre o número de livrarias existentes no seu país, não titubeia: "Dá para contar nos dedos de uma das mãos".
Não é de espantar que Moçambique tenha tão poucas livrarias e que Mia Couto seja (muito) mais lido em Portugal e no Brasil do que na sua terra natal.
A língua oficial de Moçambique é o português, mas fala-se pelo menos outras 20 neste país de 22 milhões de habitantes que vive de exportações do camarão, algodão e cajú. No relatório do Índice de Desenvolvimento Humano de 2010 da ONU, Moçambique aparece na 165ª posição, à frente apenas de Burundi, Níger, República Democrática do Congo e Zimbabwe (o Brasil está em 73º).
"Mas a situação está a melhor", diz o escritor, sobre o país na costa leste de África que foi colônia de Portugal até 1975 e que logo após a independência sofreu com uma violenta guerra civil que durou até 1992. Moçambique sabe o que é ser democracia há apenas 19 anos. "A democracia é um regime que não pode ser imposto, então há uma cultura democrática que está a nascer nas cidades. Isso não pode ser induzido artificialmente."
Com a devida vênia, transcrevemos a entrevista que Mia Couto concedeu ao iG.
iG: Quando foi a primeira vez que o sr. veio ao Brasil?
Mia Couto: Foi em 1987, em função do livro "Sonha Mamana África", uma antologia de autores africanos feita por Cremilda de Araújo Medina. Mas quando cheguei foi como se já tivesse cá estado várias vezes. O Brasil é um território imaginário que povoou a minha infância. Então quando cheguei parecia um reencontro.
iG: Após tantos livros, a vontade de escrever, a intensidade ainda são as mesmas?
Mia Couto: Ainda. O que mudou foi a relação não tão adolescente de, por exemplo, querer dizer tudo num só livro. Ficou mais madura a relação com a escrita, de não querer fazer bonito. Agora ela acontece mais natural. Não há uma busca imediata pelo bonito. O resto é a mesma coisa. Ajuda-me a não pensar na idade que eu tenho.
iG: Sente diferença em como os seus livros são recebidos em Moçambique, em Portugal e no Brasil?
Mia Couto: Sim, há algumas diferenças, mas no geral o que conta é a história, é a relação das pessoas com a possibilidade de se evadir, de encontar na literatura um convite para repensar o mundo, para reinventar o mundo. Isso é comum. O que muitas vezes percebo é um certo reencontro com uma África que foi idealizada como um lugar de redenção por alguns brasileiros. Reencontrar em África tudo aquilo que foi perdido e que se acumula como frustração do seu dia a dia. Essa África não existe.
iG: O sr. já disse que a sua geração sofreu influências de Guimarães Rosa, de Jorge Amado, mas que, hoje, os africanos conhecem pouco ou nada do Brasil. Estamos culturalmente afastados?
Mia Couto: Sem dúvida. Há um distanciamento. Há proximidades, que manifestam-se em áreas que não correspondem ao que o Brasil realmente é. Por exemplo, na área da novela, o Brasil está presente como nunca esteve. É pela via das novelas que os moçambicanos conhecem o Brasil. Mas é apenas uma ideia do Brasil. Na literatura houve um empobrecimento, os africanos não sabem o que está a acontecer no Brasil, sobretudo em relação aos novos autores.
iG: O Brasil actualmente é tido como uma força emergente no mundo. Isso é bom ou ruim para Moçambique?
Mia Couto: É principalmente bom. Um membro da nossa família que tem esse peso no mundo, com as suas políticas externas, pode ser uma voz alternativa. É como ter um tio rico: encontramos nisso uma possibilidade de estarmos presentes no mundo, por via do outro.
iG: Como o senhor situa a narrativa dos seus livros com a tradição oral africana e moçambicana?
Mia Couto: Não faço como uma missão, não me atribuo essa bandeira. Acontece porque não há outra maneira. Para falar daquilo que quero falar, tem de ser daquela maneira. É algo dominante.
iG: A identidade e o deslocamento permeiam os seus livros. Isso é fruto do contexto moçambicano ou africano?
Mia Couto: De um contexto mundial. Hoje há uma opção pela busca de identidade, embora em África se manifeste de maneira mais dramática. Preocupa-se porque normalmente essa procura é objecto de manipulação. De repente é uma identidade que se funde na ilusão de haver uma pureza, de sermos nós próprios sem sermos os outros. A identidade só existe no plural.
iG: Há críticos que dizem que a sua literatura é mais intelectual do que física, que trata menos da miséria africana e mais de questões existenciais. O que acha disso?
Mia Couto: Não aceito essas críticas, não é verdade. Esse lado mais físico, povoado de gente real está presente nos meus livros. A miséria está presente. Abordo de uma forma muito mais sensorial do que intelectualizada.
iG: O sr. não encerra os seus livros com um desfecho impactante, com alguma surpresa. Eles vão terminando aos poucos. Qual é a razão?
Mia Couto: O final tem de ser construído pelo leitor. É um final em aberto porque a própria vida é assim, não?
iG: Moçambique foi colônia de Portugal até 1975, depois passou por uma violenta guerra civil e tornou-se uma democracia há menos de duas décadas. Como o sr. define a actual situação do país?
Mia Couto: Está a melhorar. O que foi feito é um esforço enorme para se abrir ao mundo, às tendências do mundo. Um país com exercício democrático verdadeiro. A democracia é um regime que não pode ser imposto, então há uma cultura democrática que está a nascer nas cidades. Isso não pode ser induzido artificialmente.
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