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sexta-feira, 25 de março de 2011

Hortêncio Langa: os 60 anos de um grande compositor que um dia foi tocador da Gaita-de-beços e de Xighoghogwani (*)

(Hortêncio Langa com os produtores do Clube dos Entas: Edmundo Galiza Matos e Luís Loforte)

"Um artista é normalmente uma pessoa que procura acrescentar alguma coisa a tudo o que foi feito; é alguém que procura entender-se a si próprio e entender o mundo através da arte que faz"

Estamos em crer que poucos recusarão a convicção que temos de que Hortêncio Langa se encaixa que nem uma luva na afirmação que acabámos de citar. E pelas mais variadas razões, e todas elas a concorrerem, hoje, 23, para justificar a circunstância de o homem e artista celebrar os seus 60 anos de vida e 41 de carreira.

Vinte e três de Março de 1951, Manjacaze, Gaza, nasce Hortêncio Ernesto Langa. Não o conhecemos pelas terras dos Khambanes, mas quem o acompanha desde os primórdios conta-nos que ele entra para as lides musicais pela via de uma tosca gaita-de-beiços que lhe foi oferecida aos 5 anos de idade. O instrumento cabia-lhe no bolso e assim podia transportá-lo para todo o lado e em todo o lado usá-lo para soprar as mais populares cantigas da época.

Aos 12 anos, já radicado no Chibuto, um pouco mais a Sul, Hortêncio funda, com Wazimbo e Miguel Matsinhe, seus amigos de infância, os Rebeldes do Ritmo, naquilo que foi a sua primeira experiência musical em grupo. Até aí, Hortêncio apenas soprava o realejo, ou eventualmente cantasse. Por essa altura, Hortêncio também se inicia na guitarra. Viola de lata, ou xighoghogwani, entenda-se. E inicia-se com quem? Com um outro amigo de infância, o José "Xidhakwa" Mukhavele, hoje, como o Hortêncio, um nome marcante no panorama musical de Moçambique.

A necessidade de continuar os estudos, uma vez concluída a quarta-classe, leva-o à terminal do Xitonhana,"Oliveiras", onde apanha o machimbombo que o conduz à então Lourenço Marques.

Seria em Lourenço Marques, já na segunda metade da década de 60, que haveríamos de conhecer o Hortêncio, mais conhecido por Tom Tan Kamik entre a rapaziada de Mimangueni, no Chamanculo. E diga-se de passagem que foi aliás no Chamanculo que travámos conhecimento com a larga maioria dos nomes que iriam corporizar uma importante fornada de artistas-referência da actual música ligeira moçambicana.

Por aquelas alturas, e agora para avivarmos a memória do Hortêncio e de outros, a maior parte dos potenciais artistas da música ligeira emergente em Moçambique frequentava dois espaços no bairro do Chamanculo: as varandas do Telinho e do Queiroz. O Hortêncio, mais na varanda do primeiro do que na do segundo. Ainda com Wazimbo e Miguel, este infelizmente já falecido, Hortêncio participa na reedição do trio de Chibuto, mudando-lhe porém a designação para The Geyser.

Sobre as denominações dos trios de Chibuto e de Lourenço Marques, não deixamos de manifestar alguma curiosidade. Se nos parece fácil relacionar a juventude com a rebeldia, isto por causa da denominação Os Rebeldes, ainda para mais para uma banda de rapazes vindos do Chibuto, já mais difícil será relacioná-la com um cilindro eléctrico para aquecer água. Mas deixemos isso para uma outra ocasião, mormente para daqui a 10 anos quando, com propriedade e legitimidade maiores, o Hortêncio poder dizer: Ni Tsendzelekile, andei por todo o lado!

Entretanto, as tendências musicais de então induzem uma mudança estrutural dos The Geyser. Entendem os seus mentores que o trio deveria evoluir para uma estrutura de supergrupo. Integram o Jaime Machatine, mais conhecido por Jaimito, que ingressa na banda como baterista. E se calhar ninguém imaginava que ali se escondesse um virtuoso viola-solo que se viria a revelar anos depois. Um Jaimito que nos dilacera as consciências vendo-o sem rumo nas imediações do Jardim Tunduru, defronte da nossa estação emissora, e deixando-nos mensagens pungentes que só o tempo, se alguém as conservar, ou anotar, as descodificará.

Dissemos atrás que Hortêncio e os seus The Geyser decidiram evoluir para aquilo a que na época se chamou de supergrupo. E o que é isso de supergrupo? Uma resposta a esta pergunta passará, necessariamente, por termos presente que a transformação dos The Geyser em supergrupo acontece em 1970, não sendo também por isso inocente tal circunstância. Foram sem dúvida os Ecos do Festival de Woodstock, um evento que deixou marcas em todo o mundo. E só isso explica o passo dado pelos The Geyser? Pode explicar, sim, mas exigindo melhor enquadramento.

Em 2010, quando assinalávamos neste espaço os 60 anos de vida de José Mukhavele, Hortêncio Langa revelou que o documentário sobre Woodstock provocou uma autêntica onda de choque nos músicos da capital, que lotavam a sala do Scala, em sessão da meia-noite em dia de estreia. Disse-nos Hortêncio:

"O Scala estava cheio de músicos. Depois da sessão, ficámos a conversar em grupos, até às 4 da madrugada, sobre aquilo que havíamos acabado de assistir. Ninguém saiu indiferente, fomos para as nossas casas com a certeza de que algo mudaria nas nossas carreiras.”

Momento marcante do Festival de Woodstock, isto no segundo dos três dias do evento, foi quando o trio formado por David Crosby, Stephen Stills e Graham Nash evoluiu para quarteto, integrando Neil Young. Isso foi anunciado em público e em público Neil Young assumiu o seu lugar no palco ao lado dos novos companheiros. Foi um autêntico delírio! Disse-se também na altura que isso significou a passagem de trio para uma estrutura de supergrupo. Fica assim claro, portanto, que supergrupo não significa, necessariamente, um elevado número de componentes. Para isso estava o termo big band, mais dado a grupos de Jazz. Era supergrupo porque o quarteto integrava elementos com nome feito, embora, posteriormente, tivessem visto a sua cotação subir após aquele acto público.

Portanto, o conceito de supergrupo nasceu no final dos anos 60 do século passado, e era normalmente usado para designar uma banda emergente formada por nomes famosos a solo, ou provindo de bandas famosas. A curta duração foi quase uma característica comum dos supergrupos, normalmente formados para a produção de um, no máximo dois álbuns, e invariavelmente de elevadíssima qualidade. Além dos Crosby, Stills, Nash and Young de que falámos, outros supergrupos perfilam na História da música ligeira internacional. Citamos apenas os mais conhecidos entre nós: Emerson, Like and Palmer, Beatles, Pink Floyd, Queen, Genesis, Yes. E, já agora, os The Geyser!

Polémica à parte, foram os Cream que vieram a ser considerados o primeiro supergrupo da História, o qual teve na sua composição nomes como os de Eric Clapton, Steve Winwood, Jeff Back, Ginger Baker e Jimmy Page. Todos eles famosos, ou antes ou a posteriori. Um dia voltaremos a esta matéria com mais propriedade e num programa específico. E tudo porque hoje falamos de Hortêncio Langa. E para continuarmos a saga e dizer que para nós, quaisquer que tenham sido as linhas com que se vieram a coser os The Geyser na sua conversão para supergrupo, a verdade é que Hortêncio Langa se inspirou também nos Crosby, Stills, Nash and Young, com a honra de ter injectado elementos musicais da sua terra naquele tipo de música, feito de guitarra acústica e combinação de vozes fora do comum. E para isso secundado por nomes como os de João Cabaço e Arão Litsuri, como veremos lá mais para o fim.

Entretanto, e ao mesmo tempo que trabalha nos The Geyser, Hortêncio Langa inscreve-se na tuna universitária de Lourenço Marques, mais concretamente na tuna da Associação Académica de Lourenço Marques, onde toca viola e bandolim. Não só por esta incursão pelos meios académicos do cimento, mas sobretudo pela influência determinante do que vira de Woodstock, Hortêncio Langa foi, e continua a ser, para nós, um músico de pouca instrumentação, de duetos e de trios, mais dado ao acústico, do que, propriamente, a grandes bandas. Pode ser que nos enganemos, mas esta é a nossa convicção, convicção fundada no que lhe temos escutado ao longo dos anos. Tire o ouvinte as suas conclusões escutando as bonitas vozes de Hortêncio Langa e Arão Litsuri, um tudo ou nada à imagem do que lhe apontámos de Woodstock.

Depois de um hiato mais ou menos considerável, voltamos a cruzar-nos com Hortêncio Langa em Nampula, no ano de 1973, andava ele de verde-azeitona vestido e ao serviço do exército português. Expressão do seu eclectismo musical, ele faz parte de dois projectos musicais, o Grupo Alta Dimensão, e às vezes tocando com o lendário saxofonista moçambicano Chico da Conceição, como daquela vez que o vimos tocar num baile em Namialo. O Grupo 2 que integrava Eduardo Samalam, a viola-ritmo, Issufo Mussagy, na bateria, Samuel Chambe, na viola-baixo, Papaia, a vocalista, e Luís Betencourt nos teclados. E, já agora, António Marques (sim, o nosso homem das corridas de carros), no papel de apresentador. O grupo Alta Dimensão era mais curto, mais apropriado às características de Hortêncio Langa: João Paulo, que alternava actuações com Os Monstros, Mário Viegas, ao piano, José Rodrigues, a viola-baixo, e Necas na bateria.

De regresso a Lourenço marques, concluído o serviço militar, Hortêncio Langa cria, em 1974, com Jaimito, Zeca Tcheco, Billy Cuca, Milagre Langa (seu irmão) e Pedro Khumaio, a banda de afro-rock Monomotapa. Quem acompanhou com atenção a obra dos Monomotapa sabe que eles terão sido os principais precursores de uma nova inflexão que se imprimiu à marrabenta e magikha, uma acção que aconteceu entre 1974 e 1977. E se dúvidas houver... está aí o instrumental Magikha experimental!

E agora uma pausa ao discurso cronológico para dois momentos importantes: o primeiro, para desfazermos equívocos, e o segundo para um momento histórico e honroso para o Clube dos Entas. Comecemos com uma pergunta: quem é o autor do tema Xibomba xa ROMOS?

Nos anos 80, tivemos a honra de fazer parte de uma expedição cultural da Rádio Moçambique que se deslocou à cidade de Inhambane. O Grupo RM estendeu o seu elenco integrando nomes como os de Fany Mpfumu, Astra Harris, Billy Cuca, Hortêncio Langa, entre outros. O autocarro com que nos fazíamos transportar fora alugado à ROMOS, Rodoviária Moçambique – Sul. Teve muitas avarias e muitas foram as horas que consumimos até chegarmos à Terra da Boa Gente. O consolo para os massacrados expedicionários era o facto de a comitiva integrar músicos que, enquanto o autocarro era reiteradamente consertado, dedilhavam as suas guitarras ou cantavam alguns versos das suas canções. Até que, provavelmente em Zavala, com o cansaço no auge, e quando todos dormíamos, do fundo do machimbombo nos começou a chegar o som de uma guitarra tocada com paixão.

Todos nos quedámos no silêncio e embalados por aqueles langores de guitarra acústica provindos de mãos hábeis, embora desconhecidas para a maioria de nós. Hortêncio Langa sabia quem estava a dedilhar a guitarra. Sabia que era o Zé, que só podia ser o Zé Mukhavele. Improvisou a lírica, e toda ela adaptada às circunstâncias de uma viagem atribulada, embora com os seus encantos. A banana e a laranja na Manhiça, o arroz e a batata-doce em Xai-Xai, o ananás e a mandioca em Chissico, e, finalmente, o alvo do destino, o coco e a sura. É isso: “deixem de chorar que o machimbombo da ROMOS vos levará ao destino, ao destino do coco e da sura…”.

Primeiros intérpretes: uma delegação cultural de mais de 50 pessoas, entre músicos e desportistas e sob a bandeira da Rádio Moçambique.

Depois de um grande projecto que foi a banda Monomotapa, e isto para retomar o fio à meada, Hortêncio Langa teve uma curta carreira a solo, para depois formar um duo com Arão Litsuri, com o qual, aliás, iria conhecer o seu baptismo internacional, em 1979, quando se desloca a Cuba, Jamaica e Guiana, pouco depois da visita de Samora Machel àqueles países. Com a integração de João Cabaço, sem dúvida uma das melhores vozes de Moçambique, o duo passou a trio, para nós o projecto mais bem conseguido de Hortêncio Langa. Nesse mesmo ano, o trio é convidado a participar do Festival de Neubrandenburg, na então República Democrática Alemã. Da participação resultou um álbum de grande valor histórico e cultural para o nosso país, aqui recordado pelo Clube dos Entas nos seus temas mais significativos. Mas antes, uma sugestão: não só pelo seu valor musical, mas também pelo simbolismo que ele representa, este álbum deveria merecer um tratamento especial por parte do Ministério da Cultura, nomeadamente reeditando-o em suporte digital.

(*) – Viola feita de Lata de Azeite de 5 Lts

Texto da autoria de Luís Loforte para o Programa Clube dos Entas da Rádio Moçambique transmitido no dia 24/03/2011

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