O fruto, Canhu, maduro, pronto para ser esprimido e o sumo fermentado
A árvore do Canhu, o canhueiro, carregada do fruto já maduro
Grupo de bebedores do canhu, com cabaças, algures no sul de Moçambique
As comunidades da região sul de Moçambique estão em festa, tudo porque se está na época de ukanyi, vinho tradicional produzido a partir da fermentação do suco do fruto do canhoeiro.
Nesta época do ano assiste-se diariamente e, em especial, aos fim-de-semana, uma procissão de citadinos para as zonas suburbanas, incluindo alguns distritos das províncias de Maputo e Gaza, com agenda única: o consumo de ukanyi, uma bebida bastante apreciada, sobretudo, pelo seu valor social.
Diga-se, em abono da verdade, é também o momento do verdadeiro turismo doméstico.
Para um conhecimento mais aprofundado do assunto, a seguir algumas notas extraidas de um estudo realizado pelo Instituto de Investigação Sócio-Cultural (ARPAC), intitulado “Ritual das Primícias de Ukanyi”.
Ukanyi é um tipo de vinho tradicional de baixo teor alcoólico bastante apreciado, não somente pelo valor sócio-cultural que encerram as sessões de consumo, mas também pela sua conotação afrodisíaca. De facto, ao longo de gerações, o ukanyi tem sido objecto de muitos debates com relação à sua conotação afrodisíaca. Algumas pessoas se esforçam em consumi-lo, supostamente para o aumento da sua virilidade. Outras especulam negativamente em relação as tais propriedades.
O facto é que até agora não há confirmação científica. As conotações afrodisíacas são do domínio de crenças, essas propriedades têm sido atribuídas somente a uma parte de ukanyi, nomeadamente o hongwe que é a parte densa da bebida que fica no fundo do recipiente.
Tradicionalmente o hongwe era servido aos jovens de ambos sexos, como forma de dota-los de capacidades para uma melhor actividade sexual.
O suposto efeito afrodisíaco de ukanyi tem levado à tomada de medidas cautelares, durante os convívios, com a separação e distanciamento dos locais de dejecção, por sexo. Por outro lado, tem-se assistido à exposição de cordas para serem usadas contra os que perturbam a ordem e tranquilidade da festa de ukanyi.
A FESTA DA FAMÍLIA
Nos tempos idos a frutificação, fabrico e posterior consumo de ukanyi marcava a transição do ano no seio das comunidades. Uma outra importância associada ao ukanyi está relacionada, por um lado, com o fortalecimento das relações sociais e, por outro, com a criação de novos laços de solidariedade. É durante a época de ukanyi que se registam com maior frequência visitas entre indivíduos pertencentes a uma mesma família, incluindo membros de diferentes comunidades.
Durante o ano muitos membros das famílias ficam dispersos, cada um nos seus afazeres, mas chegada a época de ukanyi, as pessoas concentram-se, aproximam-se para conviver e discutir vários assuntos ligados à sua vida e a da sua comunidade. É também nesta ocasião que se fazem novas amizades.
O ritual de ukanyi cria e fortifica as redes de solidariedade entre habitantes de diferentes ecossistemas, o que por sua vez se revela importante na resposta às crises provocadas por calamidades naturais, no âmbito da segurança alimentar ou ruptura de reservas de sementes para a agricultura.
No que se refere à dimensão espiritual, o ukanyi reveste-se de uma importância crucial na manutenção do equilíbrio social. A época de ukanyi é vista com a fase de maior aproximação das populações locais aos espíritos dos seus antepassados, para fazer preces de vária ordem, tendo como finalidade a busca de um equilíbrio cosmológico, o que levou a sacralização da bebida e transformou-a num produto de venda proibida.
Para as comunidades do sul de Moçambique, o fabrico de ukanyi tornou-se numa das actividades que acompanham alguns momentos da sua vida. Com efeito, o ukanyi é indispensável nos eventos sócio-culturais, quer no seio da família, quer das comunidades.
Nas celebrações relacionadas com ukanyi, o seu consumo segue algumas regras costumeiras, nomeadamente três rituais fundamentais (kuphahla ukanyi, xikuwha e kuhayeka mindzeko), ou seja, as fases de abertura, festa e encerramento, respectivamente.
Estes rituais condicionam, na visão comunitária, o sucesso de toda a época de ukanyi, pois, supõe-se que esta bebida também alimenta os antepassados.
Todas as comunidades, independentemente do contexto social, realizam acções de modo a atingirem certa finalidade, seja política, económica ou cultural. Grosso modo, os ritos praticados testemunham a grande necessidade que o Homem tem de estar em harmonia com o cosmos.
Do ponto de vista mais pragmático, o ritual consiste na operacionalização de uma crença ou mais crenças, trazendo à superfície determinadas normas, valores e tradições comunitárias.
É neste contexto que o consumo de algumas bebidas tradicionais no seio das comunidades toma em consideração uma conjugação de factores sócio-culturais inerentes a cada grupo social. O ukanyi não é excepção. O seu consumo observa alguns rituais e mitos transmitidos de geração em geração, na base da oralidade.
Com efeito, para se proceder com o consumo de ukanyi, existem algumas regras a serem respeitadas: é preciso que o chefe de cada comunidade comece, em presença dos seus súbditos, o kuluma (ritual da abertura da época e o seu sentido ritual é tirar por certas cerimónias o carácter nocivo de um certo alimento) e só depois é que estes podem beber livremente nas suas povoações.
Tal acontece até hoje, o consumo liberalizado de ukanyi é antecedido por um ritual de abertura, conduzido por líderes comunitários, onde são evocados os espíritos dos antepassados. Este ritual é designado, de forma genérica por Kuphaha ukanyi.
IMPORTÂNCIA DO CANHOEIRO
O canhoeiro possui uma grande importância para as comunidades. Nalgumas, reveste-se de valores associados à sacralidade, noutras a aspectos políticos utilitários. Estas qualidades, por um lado, tornam esta árvore mítica e especial, no contexto da preservação cultural e, por outro lado, inserem-na na vivência política e quotidiana das comunidades.
A respeito da sacralidade, esta surge como uma tentativa de interpretação do mundo e, sobretudo de busca de tranquilidade espiritual. Trata-se de um fenómeno antigo, adoptado numa primeira fase para o estabelecimento de uma feliz convivência entre o mundo animal e o humano e depois, como uma resposta às dinâmicas societárias.
Com efeito, o canhoeiro acabou fazendo parte da cosmovisão e do modus vivendi das comunidades da África Austral, em geral, e de Moçambique, em particular.
Em suma, embora não seja de carácter obrigatório, variando de comunidade para comunidade, o canhoeiro é usado para as cerimónias de veneração ou evocação de espíritos dos antepassados (localmente, ou melhor, na região sul do país, apelidados por “gandzelo”).
No concernente aos aspectos políticos, o canhoeiro está associado a aspectos como a lealdade às tradições e o respeito aos símbolos comunitários. É neste contexto, que se estabelece a relação entre o canhoeiro e os aspectos políticos, pois, no seio das comunidades, esta árvore simboliza o poder do chefe tradicional.
O canhoeiro é das árvores que os líderes comunitários e seus súbditos se sentam à sua sombra, discutem e resolvem os vários problemas que afectam a comunidade.
Os frutos do canhoeiro em Moçambique caem somente de Janeiro a Março. Nas suas múltiplas utilidades figura também o processamento e fabrico de jam de fruta, doces variados, vinagre e xarope anti-tússico. Entretanto, as comunidades usam mais para o fabrico de sumo.
Refere-se igualmente, que na província da Zambézia, centro do país, os frutos do canhoeiro são colocados ao redor das machambas para afugentar algumas pragas, especialmente os ratos.
APLICAÇÃO MEDICINAL
No âmbito da medicina tradicional, as aplicações do canhoeiro se inserem no domínio do conhecimento tradicional ou local.
As comunidades usam a casca interna para o tratamento da malária, tosse, aftas, hemorróides, bem como no alívio às picadas de escorpiões e cobras. A raiz é usada como antidiarreico. As folhas são fervidas, produzindo-se um chá, usado no tratamento de má-digestão e na cura de dores de ouvido.
A casca do tronco é usada para variados fins medicinais.
TIMONGO
A semente do canhoeiro, localmente designado por “fula” é usada, após o processo do fabrico do sumo (ukanyi) para extrair a amêndoa (timongo) que as comunidades usam como tempero na confecção de diversos alimentos.
A amêndoa, melhor o timongo, é também iguaria, servida para acompanhar o consumo de bebidas alcoólicas ou ara servir a pessoas de importância especial, como o chefe da família, o filho ou o neto mais amado.
O consumo do timongo é um indicador social da posição hierárquica reservada à alguém e, em geral, de admiração ou respeito no quadro das relações de parentesco. Assim, o consumo do timongo permite evidenciar o status social do individuo, distinguindo-o dos demais.
CANÇÕES TÍPICAS: CANÇÃO I
He masseve kundjani
Swakala leswi unga ni mahela swona
He masseve kundjani
Swakala leswi unga ni mahela swona
(Explicação do sentido em português
Minha/meu comadre/compadre
É muito raro o que me proporcionaste)
Hoyo hoyo masseve
Axirwala xa ukanyi xikala ngopfu masseve
Hinga tsama hindau nita kurungulisa
(Explicação do sentido em português
Bem-vindo compadre
Uma oferenda de ukanyi não se ganha todos os dias
Por issso, seja bem-vindo compadre
Sente-se aqui deste lado para saber da vossa saúde)
UMA DAS CANÇÕES QUE SE REFEREM AO EFEITO AFRODISÍACO DO HONGWE
Bava Matavele
Hi nga hi lavela mathando loko litxona
Há hela hi hongwe
Hahela hi hongwé loko litxona
Hahela hi hongwe
Gwelani Matavele a hilavela mathand loko litxona
(Tradução em português)
Senhor Matavela!
Pedimos para nos arranjar companheiros
Porque não suportamos tanta excitação por causa da escória do canhú.
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